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Caim – Maldição, Marca e Mitos

Caim matando Abel

Crença popular

Um dos mais famosos mitos, infelizmente repetidamente compartilhado entre Santos dos Últimos Dias, é a crença de alguns de que Caim jamais morreu e permanece até hoje como um andarilho na face da Terra. No Velho Testamento, lemos que após Caim matar seu Irmão Abel, foi amaldiçoado pelo Senhor, que colocou sobre ele uma marca (Gên 4:11-15; Moisés 5). O Senhor então diz a Caim que “fugitivo e vagabundo” ele seria, e que a terra não mais seria frutífera quando lavrada por ele.

Para os amantes de lendas urbanas, a citação ainda mais “sólida” para apoiar a ideia de que Caim permanece vivo até hoje encontra-se em uma história mencionada no livro “O Milagre do Perdão” de Spencer W. Kimball, que declara:

“Concernente ao deplorável personagem que é Caim, temos uma interessante história extraída do livro de Lycurgus A. Wilson sobre a vida de David W. Patten. Desse livro cito um extrato de uma carta escrita por Abraham O. Smoot contando suas recordações do relato de David Patten ao encontrar-se com uma pessoa invulgar e que se apresentou como sendo Caim.

Estava cavalgando em minha mula quando de repente notei um personagem bastante estranho caminhando ao meu lado… Eu estava sentado na sela, e ele tinha a cabeça na altura dos meus ombros. Ele não usava roupa nenhuma, mas era todo coberto de pelos. Tinha a pele bem escura. Perguntei-lhe onde morava, e ele respondeu-me que não tinha lar, que vagava por toda a terra, que viajava para cá e para lá. Disse que era uma criatura miserável, que enquanto estava na mortalidade fez todo o possível para morrer, mas não conseguiu, e que sua missão era destruir as almas dos homens.” [1]

Vivo?

Significaria isso que Caim permanece vivo até os nossos dias? Uma análise além da superfície nas escrituras e citação de “O Milagre do Perdão” demonstra:

1. No relato de Gênesis 4:11-15 e Moisés 5:36-40 o Senhor jamais disse que Caim não morreria, mas que seria um “fugitivo e vagabundo” sobre a terra.

2. As escrituras indicam que o Senhor colocou sobre Caim uma marca, “para que o não ferisse qualquer que o achasse” (Gênesis 4:15). A questão é… Se Caim não podia ser morto, por que Deus colocaria sobre ele uma marca para que não o matassem?

3. As escrituras canonizadas não mencionam a morte de Caim, mas mencionam alguns detalhes da vida de Lameque, tataraneto de Caim, que assim como ele fez o mesmo convênio com Satanás. Moisés 5:51 declara:

“Pois, desde os dias de Caim, havia uma combinação secreta e suas obras eram às escuras(…)”

O uso da expressão “desde os dias de Caim” aparenta indicar que Caim já não mais vivo estava.

4. Na citação do livro “O Milagre do Perdão”, o elemento chave para derrubar o mito está na frase “enquanto estava na mortalidade fez todo o possível para morrer, mas não conseguiu“. Algo que “estava” na mortalidade obviamente não ESTÁ na mortalidade. O que a história parece sugerir é que Caim não poderia cometer suicídio.

Exemplo

O fato de um indivíduo ter visto Caim vagando pela terra não significa que ele está vivo. O Livro de Jó declara que Satanás “rodeava a terra e passeava por ela” (Jó 1:7). Significaria isso que Satanás tem um corpo físico e está vivo na existência mortal? Naturalmente não. Da mesma forma, é insensato afirmar que Caim permanece vivo simplesmente porque alguém teve uma experiência com ele.

5. A doutrina da Igreja ensina que o dilúvio foi o batismo da terra e simbolizou sua purificação. [2] Será que a terra estaria devidamente purificada de toda iniquidade se Caim, possivelmente um dos mais iníquos homens na história humana tivesse sobrevivido?

Moisés 7:38 e 8:24 afirmam que os ímpios seriam varridos pelo dilúvio, enquanto 1 Pedro 3:20 é claro ao afirmar que apenas 8 almas se salvaram, sendo esses Noé, sua esposa, seus três filhos e suas esposas (Gên 7:13). Tais versículos não dão margem para a existência mortal de Caim pós-dilúvio.

6. Ao menos dois livros Apócrifos relatam a morte de Caim. No Livro de Jasar, Caim é confundido com um animal e acertado por uma flecha por Lameque (Jasar ou Jasher 2:26-31). Já o “Livro dos Jubileus” relata que a casa de Caim desabou sobre ele, tirando sua vida. (Jubileus 4:31).

Registros

Apesar de tais registros não concordarem entre si sobre a forma com que Caim morreu, ambos concordam que ele morreu.

O livro de Jasar contém elementos que sugerem que Lameque de fato foi o responsável pela morte de Caim. Jasar 2:26-31 declara:

26 E is que Lameque era velho e avançado em dias, e seus olhos estavam ofuscados de maneira que não podia enxergar, seu filho o conduzia, e aconteceu que um dia Lameque partiu para o campo, e seu filho Tubal Caim o acompanhava, e enquanto caminhavam pelo campo, Caim o filho de Adão avançava próximo a eles; Eis que Lameque era muito velho e não podia enxergar, e Tubal Caim, seu filho, era muito jovem.

27 E Tubal Caim disse a seu pai para preparar seu arco, e com flechas ele feriu Caim, que se encontrava distante, e o matou, pois Caim parecia a eles como um animal.

28 E as flechas adentraram o corpo de Caim, apesar de ter estado ele distante, e eis que caiu por terra e morreu.

29 E o Senhor pagou o mal de Caim de acordo com sua maldade, o qual praticara contra seu irmão Abel, de acordo com sa palavras que o Senhor dissera

30 E aconteceu que quando Caim morreu, Lameque e Tubal partiram para ver o animal que tinham alvejado, e eles viram, e eis que Caim estava morte e caído sobre a terra.

31 E Lameque lamentou muito pelo que havia feito, e ao sacudir suas mãos, golpeou seu filho e causou sua morte.

Tal relato contido no Livro de Jasar sugere que a morte de Caim e Tubal Caim foram causadas acidentalmente, e possui elementos que se harmonizam e desarmonizam com o relato das escrituras. Como por ex:

Elementos similares às escrituras

– Lameque de fato matou um homem e um jovem (Gên 4:23; Moisés 5:47)
– Lameque recebeu um castigo ou maldição similar à de Caim, embora mais severa (Gên 4:24; Moisés 5:48)

Elementos diferentes das escrituras

– Em Gên 4:23, Lameque afirma ter matado “um homem por me ferir, e um jovem por me pisar”, elementos inexistentes no registro de Jasar
– Em Gên 4:15 e Moisés 5:40 o Senhor declara que qualquer que matasse Caim seria castigado 7 vezes. Gên 4:24 e Moisés 5:48 por sua vez declaram que Lameque seria castigado “setenta e sete vezes”.
– O Livro de Jasar relata que a morte de Caim por Lameque aconteceu de maneira acidental. Amaldiçoaria o Senhor um de seus filhos por um ato acidental?
– Moisés 5:49-55 não fornece detalhes de quem e porque Lameque assassinou um homem e um jovem, mas torna claro que Lameque assim como Caim havia feito um convênio com Satanás e portanto, não era um homem inocente, como o Livro de Jasar aparentemente o representa.

Dessa forma, não é possível baseado apenas nos textos disponíveis atualmente, afirmar de maneira conclusiva se Lameque de fato teve qualquer papel na morte de Caim.

7. A associação do mito que Caim permanece vivo com lendas como o “Pé Grande”, “Lobisomem”, “Chupa-Cabra” ou “O abominável homem das neves” chega a ser tão grotesca e cômica, que creio ser desnecessário qualquer comentário.

Qual foi a maldição colocada em Caim?

O livro de Moisés declara:

E Caim foi banido da presença do Senhor e, com sua mulher e muitos de seus irmãos, habitou a terra de Node, a leste do Éden” (Moisés 5:41)

As escrituras retratam a maldição de Caim como sendo o fato de ter sido ele “banido da presença do Senhor” e podemos frequentemente encontrar no Livro de Mórmon exemplos desse tipo de maldição que foi inicialmente imposta a Caim. [3]

O que era a “marca” colocada em Caim?

Juntamente com a sentença de banimento, o Senhor colocou sobre Caim uma marca, não como parte da maldição citada anteriormente, mas para que aquele que o encontrasse, pudesse reconhecê-lo e não o matar.

Embora a “marca de Caim” tenha sido por um longo período associada à pele negra existente atualmente, a natureza de tal marca não é conhecida ou clara. Tal crença não teve origem entre os Santos dos Últimos Dias, mas era a visão comum entre denominações protestantes no período anterior à restauração e foi constantemente utilizada por muitos nas época como um motivo para justificar o apoio à escravidão.[4]

Apenas uma menção é feitas nas escrituras relacionando “a semente de Caim” com a cor “negra” (Moisés 7:22). No entanto, na edição de 1840 do Livro de Mórmon, Joseph Smith trocou a expressão “Branco e agradável” por “Puro e agradável” em 2 Néfi 30:6, indicando que “Branco” e “Negro” no contexto das escrituras é quase sempre relacionado a uma condição espiritual ao invés de cor da pele.

O artigo “Race and Priesthood” do site oficial da Igreja sobre isso declara:

“A Igreja hoje, rejeita as teorias desenvolvidas no passado de que a pele negra é resultado de desfavor divino, maldição ou que reflete ações da vida pré-mortal. Também rejeita qualquer ideia de que uniões interraciais sejam pecado ou que negros ou pessoas de qualquer raça são inferiores em qualquer aspecto. Líderes da Igreja hoje, condenam qualquer racismo, passado ou presente, em qualquer forma.”[5]

Bruce R. McConkie

Bruce R. McConkie era um dos líderes da Igreja que antes da revelação que deu fim à restrição do Sacerdócio, apoiava a linha teológica que a raça negra é descendente de Caim. Com a revelação de 1978, o entendimento sobre o assunto aumentou e o Apóstolo declarou:

“Esqueçam tudo o que eu falei, ou o que(…) Brighan Young falou, ou quem quer que seja (…) que seja contrário à presente revelação. Nós falamos com um conhecimento limitado e sem a luz e conhecimento que agora foi dado ao mundo. Nós recebemos nossa verdade e luz linha sobre linha e preceito sobre preceito. Nós temos agora recebido um novo dilúvio de inteligência sobre este assunto em particular, e isto apaga toda a escuridão, ponto de vista e pensamentos do passado. Eles não importam mais. Não fazem uma partícula de diferença o que qualquer pessoa tenha dito sobre os negros antes do primeiro dia de Junho deste ano. Este é um novo dia e um novo arranjo, e o Senhor deu agora a revelação que faz brilhar a luz no mundo com relação a esse assunto. “[6]

E. A. Speiser, um arqueólogo dedicado a compreender aspectos do Velho Testamento sugeriu que a marca de Caim era provavelmente similar a outras marcas existentes no velho testamento, que consistiam em sinais na testa. Ezequiel 9:4-6 por exemplo literalmente descreve marcas na testa como uma forma de proteção.

A Maldição de Canaã

Canaã, por uma razão desconhecida foi amaldiçoado por Noé pela ofensa de seu pai Cão (Gênesis 9:20-27). Nenhuma menção ao Sacerdócio ou a cor de pele foi feita. De acordo com a Bíblia, Canaã foi o fundador da nação de Canaã (Gênesis 10:15-19). A Nação de Canaã por sua vez era Caucasiana, não negra, e não possuía conexões com nações negro Africanas. [7]

Apesar de os versículos bíblicos claramente afirmarem que Canaã foi amaldiçoado, não é absolutamente claro se tal maldição seria estendida a seus descendentes. O uso de Gênesis 9 para associar uma maldição bíblica com os descendentes de Cão teve início entre o terceiro e quarto século após Cristo. [8] Tal linha teológica foi amplamente compartilhada por antigos teólogos Cristãos como “Origin” e Augustinho, sendo também comum entre Judeus, Mulçumanos e Cristãos. [9]

Egyptus, a esposa de Cão

O Livro de Abraão é o único nas escrituras que menciona o Sacerdócio sendo restrito a uma linhagem específica (Abraão 1:21-27), sendo especificamente a linhagem dos Faraós do Egito. De acordo com a Bíblia, o Egito foi fundado por Mizraim, um outro filho de Cão e pelo irmão de Canaã, que aparentemente explica por que Abraão conecta o Egito com os Cananitas em Abraão 1:21.

Entretanto, os povos da nação Egípcia, tanto antiga como atual jamais foram negros Africanos mas pertenciam ao Norte da África, cuja cultura era relacionada com os povos do Oriente Médio. O Pesquisador Hugh Nibley explicou que a restrição do Sacerdócio à linhagem dos Faraós se dava pela requisição do Sacerdócio por parte da linhagem materna (através de Egyptus), ao invés da linhagem patriarcal.[10]

Discípulos antigos ainda vivos atualmente

As escrituras de fato declaram que a alguns indivíduos, foi prometido a garantia de que poderiam permanecer na existência mortal até a Segunda Vinda de Jesus Cristo, sendo eles o Apóstolo João (João 21:22-23) e os três discípulos Nefitas (3 Néfi 28:1-7). As escrituras porém indicam que a lista de seres extremamente idosos é ainda maior.

O próprio Salvador Jesus Cristo declarou:

“Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino.” (Mateus 16:28)

Embora as escrituras e nossa doutrina atestem a permanência terrena de tais indivíduos, Caim, como amplamente demonstrado anteriormente, certamente não está entre eles. Infelizmente, muitas lendas urbanas com relação a Caim, sua maldição e marca tem sido perpetuadas no decorrer dos séculos e frequentemente podemos encontrar tais mitos sendo repetidamente compartilhados entre membros da Igreja até mesmo em nossos dias.

Manual de ensino

O Manual de ensino do seminário declara:

“Outras áreas preocupantes são aqueles assuntos que se afastam do cerne e da alma do evangelho e fazem com que o professor deixe de lado as coisas mais importantes e se desvie do rumo certo. Às vezes há a tentação de entreter ou divertir. Geralmente se tratam de coisas interessantes de se saber. Certifiquem-se de confirmar e comprovar tudo que ensinarem em fontes confiáveis. Jamais forneçam informações aos alunos com base em boatos ou rumores. As coisas que são ensinadas somente por serem interessantes, de modo geral, são uma perda de tempo.”[11]

De qualquer forma, como membros da Igreja precisamos aprender a investigar qualquer informação duvidosa e boatos amplamente compartilhados antes de depositarmos a nossa fé e atenção. Nem tudo que é aparentemente interessante, emocionante ou poético à mente humana é necessariamente verdade. Algo não se torna verdade apenas porque muitos ou a devastadora maioria acredita ou falso porque ninguém acredita.

Nossa crença deve ser unicamente baseada na verdade e jamais apegada a informações que apenas visam entreter. Como Bruce R. McConkie mencionou, nosso entendimento da doutrina de Cristo se dá linha sobre linha e preceito sobre preceito “Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente.” (Efésios 4:13-14)

Artigo originalmente publicado em IntérpreteNefita.com

Fontes:

[1] (Lycurgus A. Wilson, Life of David W . Patten, Salt Lake City: Deseret News, 1900, pg. 50.)” (O Milagre do Perdão, p.61)
[2] https://www.lds.org/scriptures/gs/flood-at-noahs-time?lang=por
[3] 1 Néfi 2:21; 2 Néfi 5:20; Alma 42:9; Alma 50:20; Helamã 12:25; Éter 2:15
[4] Haynes, Noah’s Curse: The Biblical Justification of American Slavery, p. 127-8 citing Palmer, “The Import of Hebrew History,” Southern Presbyterian Review 9 (April 1856)
[5] “Race and the Priesthood,” Gospel Topics, lds.org. (2013)
[6] Bruce R. McConkie, “All Are Alike unto God,” address in the Second Annual CES Symposium, Salt Lake City, August 1978.
[7] Estudiosos acreditam que o melhor candidato aos ancestrais dos negros Africanos é Cuxe, o irmão de Canaã, cuja nação encontrou o que hoje é conhecido como a Etiópia. (Gênesis 10:6; Jeremias 13:23)
[8] Stephen R. Haynes, Noah’s Curse: The Biblical Justification of American Slavery (New York: Oxford University Press, 2002)
[9] Origen, “Genesis Homily XVI,” in Homilies on Genesis and Exodus, translated by Ronald E. Heine (Washington: Catholic University of America Press, 1982)
[10] Abraham in Egypt (Deseret Book, 2000 [2nd] ed.), p. 360–61.
[11] Manual “Ensino no Seminário – Textos Preparatórios (pag. 71)

| Para refletir
Publicado por: Luiz Botelho
Luiz Botelho serviu na Missão Santa Maria e atualmente mora em Provo-Ut. Estuda Antropologia na Utah Valley University e descobriu na Ciência, História, Filosofia e Teologia sua verdadeira paixão. Atualmente trabalha voluntariamente como Diretor Internacional da FairMormon, é autor do Interpretenefita.com e um dos Diretores da More Good Foundation no Brasil.
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